A sopa é um dos mais antigos alimentos cozinhados do mundo e faz parte de quase todas as economias alimentares. Por concentrar grande parte do tempo partilhado entre pais e filhos, interpreta um dos principais papéis no filme doméstico. A hora da sopa é um momento fácil ou difícil, silencioso ou muito falado: esta é uma história ensopada na oralidade.
Haverá mil e uma maneiras de comer e fazer comer a sopa. E outras tantas para descobrir cada uma delas: é neste exercício que se pode muito bem abrir o apetite.
– Eu até quero a sopa, a minha boca é que não quer comê-la!
– Então, come-a pelo nariz!
– Mas o meu nariz até se torce de a cheirar...
– Então, come-a pelos olhos!
– Mas eles nem a querem ver...
– Então, come-a pelos ouvidos!
– Mas eles nem querm ouvir falar dela...
– Se eles soubessem o que ela tem para dizer...
O filho pôs-se a mastigar a colher como quem está a pensar e disse com ar brincalhão:– ... A sopa fala?!
Excerto
Quando a sopa é um problema… Quando a sopa chega à mesa da mais comum das famílias, isso é frequentemente sinónimo de problemas. È que a hora da sopa é a hora da tortura, a hora da recusa ou da birra. Por mais deliciosa, saudável e nutritiva que a sopa seja, os filhos olham-na com desconfiança, horror mesmo, e os momentos de prazer que a saboreariam transformam-se em intermináveis, com silêncios ou barafustas, com austeras reprimendas ou promessas doces, até com histórias e brincadeiras.
É no campo aberto por estas últimas que «Ssschlep», o mais recente livro da infatigável dupla Eugénio Roda (texto) e Gémeo Luís (imagem), traz um importante contributo para a integração da teoria da sopa no filme da vida doméstica. O desafio é, pois, aliciante e os resultados propostos capazes de… mudar o mundo, que o mesmo é dizer, abrir o apetite para a sopa. Ora pois!
Ensopada em jogos de palavras, a história começa com a cena familiar da sopa a vir para a mesa. Que sopa era nem importa muito, porque é uma sopa que solicita os sentidos.
E a sopa fala, claro.
[...] no tempo em que os vegetais falavam, a sopa era outra conversa, uma conversa animada em que ninguém se lembrava de dizer que não queria comer. Naquele tempo, ninguém ralava a sopa nem se ralava com ela. Mas um dia apareceu a bruxa da varinha mágica com aquele ar de fada e começou a ralar a sopa. Então os vegetais, ralados, deixaram de falar!"
Sem esquecer o resto da conversa, isto é, do jantar, que o tempo é o da (re)descoberta do prazer à mesa, com bocas, narizes, olhos e ouvidos bem abertos para todas as conversas! Porque a teoria da sopa é, em verdade, uma teoria da conversa. E fazer com que não seja só conversa passa por cada um reinventar a hora da sopa com as mil e uma histórias possíveis. Na sessão de lançamento de «Ssschlep», realizada a 18 de Setembro na Cozinha do Cardeal, em Évora (integrada no encontro Representações, organizado pelo IELT e pelo Festival Escrita na Paisagem), em tom de conluio de adultos e à roda de uma sopa da panela, foi isso mesmo que se disse e se provou.
Eugénio Roda (pseudónimo de Emilio Remelhe, a.k.a. Elliot Rain) e Gémeo Luís (nome de arte de Luís Mendonça) são autores de uma boa mancheia de livros em colaboração (recordo O moinho de tempo, O piano de cauda, O quê que quem — Notas de rodapé e corrimão, Desventuras completas I e II, Aventuras domiciliárias I, II e III). O quê que quem obteve o Prémio Nacional de Ilustração 2005. «Ssschlep» é o seu décimo primeiro livro. E abre o apetite!
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