terça-feira, 27 de agosto de 2013

Um avental cheio - António Torrado e Cristina Malaquias

Um avental cheio


Isto passou-se num tempo em que mouros e cristãos andavam à bulha pela mesma terra, por sinal a mesma que, mais tarde, se chamou de Portugal. 

Uns de um lado, outros do outro, conquistavam vilas e aldeias, que logo a seguir tinham de abandonar, para mais depois reconquistarem, numa luta desenfreada e sem fronteiras certas. Alfanges e espadas cruzavam-se com raiva, corria sangue, perdiam-se muitas vidas. 
Aconteceu que, uma vez, não sei onde, uma mulher sarracena estava para dar à luz. O marido, aflito, procurou entre as mulheres mouriscas quem a socorresse, mas nenhuma tinha experiência para tal. Falaram-lhe, no entanto, de uma parteira cristã, que vivia do outro lado da guerra. 
O homem arriscou-se. A coberto da noite, evitou as sentinelas e conseguiu chegar a casa da parteira. Com muito bons modos, pediu-lhe que lhe acudisse à mulher e ao filho que estava para nascer. 
- Prometo encher-te o avental de riquezas - disse ele, a convencê-la. 
A parteira, ou por cobiça ou por condoimento, foi com o mouro, passando, no entanto, pelos mesmos riscos por que ele tinha passado. 
Concluído o parto, sossegada a mãe com o bebé nos braços, o mouro mandou-a levantar o avental e despejou-lhe para a abada dele uma cesta cheia de carvão de lenha. 
- Guarda-a até chegares a casa - avisou-a o pai do menino que ela ajudara a nascer. 
A mulher sentiu-se lograda, mas temeu-se de protestar, receosa de que o mouro lhe levasse a mal. No seu íntimo, resmungava: ?Então este montinho de carvões, que me sujam o aventalinho de chita, é que valem a riqueza prometida? Da próxima não torno, ai não torno não, mouro velhaco". 
Voltava para casa já de madrugada. Uns soldados cristãos, que estavam de atalaia, viram-na e mandaram-na parar, de lanças em riste: 
- Se vens de terra inimiga, não vens por bem - disseram-lhe. 
Ela benzeu-se diante deles e mostrou-lhes o seu leve carrego de carvões, desculpando-se: 
- Sou uma pobre mulher que anda a colher gravetos de uma queimada, para conforto da casa e meu e de meu gato, que gosta de dormir ao borralho. 
Deixaram-na ir. Quando chegou a casa e fechou a porta atrás dela, de coração ainda a bater de susto, ia para deitar os carvões para a lareira e viu que - olhai a surpresa! - tinha o avental cheio de barras de ouro. Até o pó de carvão se tinha transformado em ouro em pó. Afinal o mouro era um mágico e não lhe falhara a paga. 
Parece que o único que não apreciou a transformação foi o gato que gostava de dormir ao calor do borralho.

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