Para a minha mãe, que muito amo,
que voou para a Montanha Encantada...
Havia, certa vez, um bando de gansos selvagens... É preciso dizer que eram selvagens, para não confundir com os gansos domésticos.
Gansos domésticos têm medo de voar, não gostam das alturas, preferem viver fechados em cercadinhos de tela, desde que seus donos lhes deem milho e verdura picada.
Ah! Como são diferentes os gansos selvagens.
Não sabem o que é ser bicho de um dono. São livres.
Voam muito alto. Viajam para lugares desconhecidos, distantes, ainda que isso seja perigoso.... São mais magros: devem ser livres para poder voar. E os seus olhos são diferentes.
É que eles viram estrelas e pores-do-sol que os gansos domésticos não podem ver.
Nossos gansos eram selvagens.
Viviam livres, sem dono, numa linda planície. Havia florestas, e o cheiro das árvores, pelas manhãs, era gostoso. Seus companheiros eram os outros bichos que amam a liberdade: veados, esquilos, sabiás, pintassilgos, borboletas, abelhas...
No centro da planície havia um lago.
Era ali que os gansos brincavam. Era ali que eles ficavam mais bonitos. Todo o mundo sabe que os gansos são desajeitados, bamboleantes e engraçados na terra firme. Mas na água ficam serenos e calmos, como os navios....
Lá viviam eles, alimentando-se de bichinhos e brotos tenros de verdura. Botavam seus ovinhos, chocavam gansinhos e os gansinhos cresciam.... mas nem tudo era bom. Nada é perfeito.
Às vezes o calor era demais. Ou frio demais. E havia os caçadores, com suas espingardas, dando tiros, rindo quando uma ave morria...
Foi ali que nasceu um gansinho, bem pequeno, menor que um ovo. Tinha de ser. Pois é dentro dos ovos que as gansas botam, que os gansinhos se formam, a pouco e pouco.
Seu pai lhe contou no ouvido, como num segredo, o nome que havia escolhido para ele.
Não... não foi Roberto, nem Ricardo, nem Dirceu... “Foi Cheiro-de-Jasmim. Porque todo mundo que sente o cheiro de jasmim sorri, feliz... Quero que meu filho seja feliz... quero que ele faça os outros felizes”, disse o pai Ganso.
“Se o pai ama o filho, o nome do filho deve ser algo que o pai tira do fundo de seu coração.”
Havia muitos nomes lindos de gansos: chuva-e-tarde-de-verão... sombra-de-árvore... liberdade... voo-alto... amigo... brilho-da-lua, etc...
Cheiro-de-Jasmim cresceu como todos os outros gansinhos. Não fez nada diferente. Aprendeu a andar, aprendeu a nadar, experimentou o calor e teve que se abrigar do frio, tremeu de medo ao ouvir o barulho das armas dos caçadores... mas havia algo de muito especial...
Ele gostava das horas que todos os gansos se reuniam, quando o sol ia se pondo... O sol se refletia, dentro do lago. Parecia uma fogueira... E Cheiro-de-Jasmim não entendia por que é que a água do lago não apagava o fogo do sol, lá no seu fundo...
Esta era a hora em que os velhos se punham a contar estórias. E falavam especialmente das montanhas mágicas.
Montanhas mágicas. Elas podem ser vistas lá longe, justo onde o sol estava se pondo. Eram altas, misteriosas, encantadas, A primavera durava sempre... não havia calor nem frio demais.
E havia um fruto encantado, vermelho como o sol e que, se comido, fazia com que os gansos fossem jovens para sempre.
Até os velhos e aleijados voltavam a ter os corpos de outrora, perfeitos, fortes, belos. E, sobretudo, lá não havia caçadores.
— Se as montanhas mágicas são tão maravilhosas, por que é que não nos mudamos para lá?, perguntou Cheiro-de-Jasmim.
— É que elas são altas demais, respondeu o velho ganso, contador de estórias.
Para se chegar até lá, o corpo tem que ficar leve, muito leve... é preciso ser como uma libélula... um papagaio flutuando ao vento... Somos pesados demais... sabem por quê?
É que temos medo de tanta coisa. É o medo que nos faz pesados e porque somos pesados ficamos com as caras tristes, cansadas... quem tem cara triste não pode voar... mas quando o tempo vai passando, os gansos vão ficando leves, até que chega o dia do grande vôo...
Cheiro-de-Jasmim olhou para o seu pai.
Olhava este para as montanhas encantadas. Já não havia mais o brilho do sol. Mas o brilho da lua as tornava mais belas ainda.
E ele notou que seu pai, outrora pesado e sério, estava ficando mais leve. Pela primeira vez ele sentiu uma tristeza de pensar que, um dia, eles se separariam. Mas, por que partir, se a vida é tão boa?
— É necessário partir para continuar a viver, respondeu o velho ganso, adivinhando os pensamentos que passavam pela cabecinha de Cheiro-de-Jasmim...
— Quando se fica mais leve, fica difícil viver aqui. A comida, muito pesada, faz mal. O ar, muito pesado, faz mal. O frio dói nos pulmões. As coisas mais leves são mais belas e sobem mais.
Mas são mais frágeis. Precisam de um ar diferente. E por isso é necessário partir para as montanhas encantadas...
Um dia o coração diz que é preciso partir para continuar a viver. Quando isso acontece, chegou a hora da DESPEDIDA....
O tempo passou.
Cheiro-de-Jasmim cresceu. Vieram seus filhos. Ele ficou pesado como todos os outros. Enquanto isso seu pai ficava mais leve...
Até que chegou o dia do adeus. Nada mais segurava aquele ganso, mais selvagem e mais leve do que nunca.
Estava pronto para a viagem misteriosa.
Claro que havia algo que o prendia. O amor pelo lugar, o amor por todos... E especialmente, o amor por Cheiro-de-Jasmim. Como ele o amava!
Cheiro-de-Jasmim chegou-se ao pai, abraçou-o e perguntou:
— Quando você partir, vai sentir saudades?
O velho ganso se calou.
Cheiro-de-Jasmim continuou:
— Não chore... eu vou abraçar você...
E assim, ficaram juntos, muito tempo, pensando que a vida era tão boa, tão bonita... O vento veio de mansinho, sem nenhum barulho. O velho ganso nem precisou bater as asas. Ele estava leve, leve... e ele partiu para a montanha encantada.
Todos se reuniram, como sempre faziam quando isso acontecia... Todos falavam da saudade e choravam.
O mundo já não era o mesmo...
Mas Cheiro-de-Jasmim podia jurar haver ouvido os risos de seu pai, tais como ouvira muitos anos atrás, quando era jovem e belo.