Hoje é dia mundial para a consciencialização do autismo.
Ontem por acaso descobri um blog "T2 para 4". A autora escreveu sobre a sua experiência como mãe de duas meninas com Espectro do Autismo.
"De dois passamos, num instante e de uma só vez, a quatro. E, à medida que as crias vão crescendo, de uma assentada só – como em tudo na nossa vida -, o séquito que rodeia as pequenas princesas gémeas passa a ser bem mais numeroso do que tia, avós e pais; passa a incluir uma autêntica equipa de técnicos e profissionais que acompanham o seu desenvolvendo, a par e passo com a família. De um dia para outro (bem, é mais de um mês para outros porque estas coisas demoram tempo), vemos incluídos nos nossos contactos habituais pediatras especialistas em autismo, terapeutas da fala e terapeutas ocupacionais, educadora e psicóloga da intervenção precoce e tarefeira.
Naquele gabinete de cores indefinidas e com cantos a denunciar alguma humidade, num Hospital Pediátrico velho de Coimbra, naqueles corredores cheios de brinquedos e naquela sala de espera com mesas, lápis e folhas (um oásis de cores num edifício cinzento e velho), uma senhora muito simpática e de olhos ternos que vestia bata branca acompanhada por outra senhora igualmente simpática, que me afastara das piolhas que ficaram com a avó, a fazer-lhe a pobre cabeça em água, conversa comigo. Após horas de observação, a possibilidade de um diagnóstico, soa a algo dito numa língua estrangeira: “desvio çljdlkhf fjhwefghbvcmks autista”. Ouvi autista e não ouvi mais nada, fiquei com o cérebro a mil e a projetar desgraças, sentia-me presa num diálogo de surdos sem assimilar ou sequer destrinçar o que me estavam a dizer – eu só tinha ido a uma mera consulta de desenvolvimento para saber o que se estava a passar com as minhas filhas, esperava algo rotineira do género medir/pesar, nem sequer estava ali o pai para me ajudar a lidar com aquilo tudo, não estava preparada para a dimensão de algo assim, o quê? uma deficiência?, oh meu deus, o que vou fazer? porquê as minhas meninas, que mal fizeram elas?, a médica enganou-se e eu vou provar, está tudo doido e eu a ver, espectro? mas um espectro não é um fantasma do Harry Potter? – O meu chão fugiu quando se falou em NEE (Necessidades Educativas Especiais) porque conheço todos os (d)efeitos que isso traz e as conotações associadas.
Depois desta notícia, que recebi sozinha, eu e o marido voltámos a estar com esta pediatra, sem as piolhas e com mais calma. Desde esse dia, em agosto de 2010, a nossa vida mudou e encarámos como desafio desmistificar as palavras "autismo" e "deficiência" (porque, severo, profundo ou ligeiro - como, felizmente, é o caso - é uma deficiência) e fizemos a promessa de manter o que temos vindo a fazer, amando-as e educando-as exatamente da mesma maneira, porque não deixam de ser as nossas filhas.
A nossa história ainda me revolta porque eu sempre - mas sempre soube - que havia algo de errado com o desenvolvimento das minhas filhas. Mas, depois de uma gravidez tão complicada e de um pós-parto tão doloroso e de tantos pediatras de supostas consultas de desenvolvimento de gémeos a dizer para não nos preocuparmos, acabamos por não atribuir tanta importância a certos sinais como deveríamos, desde logo...
Não há como evitá-lo. Por muitos anos que passem, por muita evolução que as piolhas demonstrem, por muito que tentem dizer-me que se vai sempre a tempo – as balelas do costume -, a verdade é que não consigo esquecer – nem perdoar – termos passado 3 anos, 3 longos anos entre consultas de desenvolvimento de gémeos e nunca me tivesse sido dada a hipótese de explicar o porquê de as piolhas não terem um comportamento típico para a idade, comparativamente a outras crianças. “Ah, não se pode comparar!” – dizem-me – “Cada criança tem o seu ritmo”. Certo. Cada criança tem o seu ritmo. E que ritmo será esse quando essa criança brinca por filas, come por cores ou texturas, não fala aos 3 anos, usa ecolália para se exprimir – e mal! -, não sabe controlar o que sente e auto agride-se? É isto típico?
As consultas de desenvolvimento de gémeos tinham a periocidade de 1 ano e era sempre tudo a despachar. Até entendo que, em comparação com outros gémeos lá presentes, muito bem estavam as minhas: nunca precisaram de incubadoras nem berçários, aceitavam leite materno e artificial (ainda que pouquíssimo), nunca perderam peso, nunca estiveram internadas. Mas não seria isso, desde logo, um sinal a ter em conta? Para crianças que nasceram com 36 semanas, a ausência de prematuridade não deveria chamar a atenção?
As dúvidas eram mais que muitas e começaram logo aos 7 meses. Nessa altura, o pediatra olhou para mim como se eu fosse um ET e disse-me que o azul era a última cor que os bebés viam (mas era a preferida das piolhas) e que era impossível encaixarem peças geométricas (mas faziam-no. E faziam-no muito bem e rápido.). Era impossível mas não havia material pedagógico para averiguar a veracidade dessa afirmação… E quando apareceu, já as piolhas tinham 3 anos e fizeram o encaixe em 2 segundos... Com o passar do tempo, o meu grau de loucura foi aumentando até ser dada como louca na última consulta – a dos 3 anos. De nada adiantou eu ter chamado a atenção para a dificuldade que eles médicos em equipa tiveram em avaliar o desenvolvimento das piolhas aos 9 meses (ah e tal, elas fazem coisas dos 12 meses mas não adquiriram algumas dos 6. Vamos pela média…) , a lista de comportamentos e sinais atípicos que imprimi não foi sequer tocada, a presença da minha mãe a reforçar a nossa dificuldade em lidar com as birras delas não foi de todo valorizada. “Cada criança tem o seu ritmo”. Desfralde? Pfff, que é isso? Não me deram ouvidos e eu andava há 2 anos a batalhar para o desfralde. Aconteceu 1 ano e meio depois. Sim, aos 4 anos é que o desfralde foi alcançado. Sem ajuda de ninguém porque eu desistira. Uma manhã, as piolhas acordaram e vestiram cuecas. Tão simples quanto isso. “Olhe mãe, cada criança tem o seu ritmo.”
A gota de água foi o não ligarem a mínima para os sinais de automutilação. Uma das piolhas tinha autênticas clareiras na cabeça, a outra andava toda mordida nas mãos, eu falava das birras e do excesso de transpiração quando isso acontecia, da frequência absurda das diarreias e ninguém, NINGUÉM, me deu ouvidos. “Cada criança tem o seu ritmo. Isso passa”. Odeio esta frase.
Não passou. Não passará. O autismo não tem cura.
Desesperada, farta de lágrimas vertidas em vão, exasperada e de coração apertado, fui falar com a única pessoa que achou que eu tinha razão no que dizia e que havia ali qualquer coisa desviante: o nosso médico de família. Ouviu-as a falar em inglês uma com a outra, a criptofasiarem uma com a outra, alheias a todo o mundo exterior, reviu o comportamento e desenvolvimento delas ao longo das consultas que fomos tendo com ele (nunca tivemos pediatra particular; sempre fomos ao centro de saúde e fomos bem acompanhados pelo médico de família). Na perspetiva dele, haveria ali algo mais do género da sobredotação e tranquilizava-me, brincando comigo e dizendo que não tarda passariam logo para a universidade. Ele vi-as tão autónomas e tão desenrascadas! Esses booms de desenvolvimento que elas sempre tiveram acabavam por camuflar os atrasos e isso intrigava quem lidava com elas, pais incluídos.
Foi feito o pedido para a consulta de desenvolvimento. Mal soube do possível diagnóstico, telefonei-lhe. Em tom de brincadeira, lá me dizia ele “Então, já tens os documentos para as inscreveres na Universidade?” e eu respondi “Não… Acho que vai ficar um pouco longe disso… Elas têm autismo.”. Silêncio. Mais silêncio. “Tens a certeza? Não houve nenhum engano?”. Engano nenhum.
Nem costumo falar sobre isto mas acho que o 1º click de todos, aquele que se nega na nossa cabeça para sempre, foi elas não olharem bem para mim quando mamavam… Mas ouvíamos dizer que os bebés vêm tudo baço nos primeiros dias de vida, que é normal, que “cada criança tem o seu ritmo”. Quando me perguntavam se elas olhavam para mim, eu respondia sim porque, de facto, olhavam, mas não era aquele olhar sustentado e profundo como é agora. Como sempre foram fazendo contacto ocular, não relacionei. Mas tudo o resto foi ignorado pelos médicos… Desde os 7 meses de idade e eu isso tenho guardado com muito ressentimento. Não consigo desligar nem perdoar. Foi preciso sofrermos tanto, vê-las a agredirem-se e a ficarem sem cabelo e a terem birras que nos punham a todos em lágrimas para se chegar a uma conclusão tão óbvia… 3 anos!
Felizmente, nunca é tarde para avançar com o que quer que seja e esforçamo-nos todos os dias para que as coisas se componham. E felizmente, apesar de autismo, é algo ligeiro. Mas, nem tão grave nem tão ligeiro e as terapias fazem parte das nossas rotinas familiares desde 2010, as sessões com a psicóloga idem, a documentação para entregar na escola é mais que muita e, apesar de não ter posto os pés na Faculdade de Medicina, tenho uma especialização em Perturbação do Espectro do Autismo. Tentei fazer as pazes com o diagnóstico (que podia ser outro qualquer) e mostrar ao mundo que a ignorância/incompreensão/comentários alheios doi muito!! Embrenhei-me em lutas que nunca pensei travar: organizei exposições de trabalhos de crianças/adolescentes autistas com o intuito de mostrar a diferença e a semelhança, promovi ações de sensibilização para crianças, adultos, monitores, formadores/professores, etc, iluminei uma escola de azul no dia da consciencialização do autismo, e sei lá mais o quê. Não fiz as pazes com o diagnóstico. Todos os dias são dias de trabalho, inconscientemente, intuitivamente. Mas todos os dias são dias de amor. Em resposta à pergunta "se o autismo pudesse ser diagnosticado numa ecografia ou amniocintese, abortarias?", não penso duas vezes: não. Amo as minhas filhas mais do que se possa imaginar, amo-as tanto que até falta o ar. São autistas mas crianças saudáveis e muito muito felizes. Genuinamente felizes."
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