Uma vez por mês, uma palavra, um texto, um desenho.
#3: ALGAZARRA
Cá está uma palavra com barulho dentro, uma palavra-búzio: se a encostarmos bem à orelha dá para ouvir (no ouvido direito) crianças a trotar pela sala numa cacofonia de guinchos e gritinhos, ou (no ouvido esquerdo) o marulhar de vozes numa plateia ansiosa, minutos antes do início de um concerto.
E é também uma palavra-megafone (tal como esta: ribombar), que parece ampliar o som, elevá-lo acima do movimento, ao contrário de outras suas congéneres – como alvoroço ou rebuliço, por exemplo – em que acontece precisamente o contrário: piam fininho. Que é como diz: o som da palavra não faz jus ao estardalhaço que representa.
Um misto de confusão e de alegria, uma espécie de vida em registo hiperbólico – isto é a algazarra nos seus dias bons. Mas também há o lado negro da algazarra. A sala de espera do centro de saúde, da Segurança Social ou de qualquer outro centro de chinfrim municipal. Ao fim de horas e horas a ver as senhas avançar a conta-gotas, uns resmungam entre dentes, outros queixam-se alto e bom som. E não podia faltar o clássico pingue-pongue de insultos entre um funcionário e alguém a quem disparam os ânimos e, a reboque, lá dispara também o volume da conversa.
As crianças, já sem posição nem distracção que as valha, impacientam-se, exasperam e desesperam. E já se sabe que o choro se pega como os bocejos: basta um miúdo abrir a goela para os outros irem todos atrás, num dominó de berros, patadas, birras de sono e lágrimas de crocodilo.
Esta mesma comitiva, numa festa de anos ou no recreio, não faria o medidor de decibéis registar alterações de maior, o que muda é mesmo só o cenário. Aí são guinchos estridentes e gargalhadas, gritinhos pululantes de excitação e pequenos selvagens com pilhas recarregáveis num berreiro pegado.
É preciso nervos de aço para o suportar e, acima de tudo, é preciso uma palavra com isolamento sonoro, como se fosse forrada com caixas de ovos, capaz de conter lá dentro todo este cagaçal de meia-noite: a algazarra.
Texto de Catarina Sacramento
Ilustração de Rita Cortez Pinto
(Publicado a 13 Março 2014)
Cá está uma palavra com barulho dentro, uma palavra-búzio: se a encostarmos bem à orelha dá para ouvir (no ouvido direito) crianças a trotar pela sala numa cacofonia de guinchos e gritinhos, ou (no ouvido esquerdo) o marulhar de vozes numa plateia ansiosa, minutos antes do início de um concerto.
E é também uma palavra-megafone (tal como esta: ribombar), que parece ampliar o som, elevá-lo acima do movimento, ao contrário de outras suas congéneres – como alvoroço ou rebuliço, por exemplo – em que acontece precisamente o contrário: piam fininho. Que é como diz: o som da palavra não faz jus ao estardalhaço que representa.
Um misto de confusão e de alegria, uma espécie de vida em registo hiperbólico – isto é a algazarra nos seus dias bons. Mas também há o lado negro da algazarra. A sala de espera do centro de saúde, da Segurança Social ou de qualquer outro centro de chinfrim municipal. Ao fim de horas e horas a ver as senhas avançar a conta-gotas, uns resmungam entre dentes, outros queixam-se alto e bom som. E não podia faltar o clássico pingue-pongue de insultos entre um funcionário e alguém a quem disparam os ânimos e, a reboque, lá dispara também o volume da conversa.
As crianças, já sem posição nem distracção que as valha, impacientam-se, exasperam e desesperam. E já se sabe que o choro se pega como os bocejos: basta um miúdo abrir a goela para os outros irem todos atrás, num dominó de berros, patadas, birras de sono e lágrimas de crocodilo.
Esta mesma comitiva, numa festa de anos ou no recreio, não faria o medidor de decibéis registar alterações de maior, o que muda é mesmo só o cenário. Aí são guinchos estridentes e gargalhadas, gritinhos pululantes de excitação e pequenos selvagens com pilhas recarregáveis num berreiro pegado.
É preciso nervos de aço para o suportar e, acima de tudo, é preciso uma palavra com isolamento sonoro, como se fosse forrada com caixas de ovos, capaz de conter lá dentro todo este cagaçal de meia-noite: a algazarra.
Texto de Catarina Sacramento
Ilustração de Rita Cortez Pinto
(Publicado a 13 Março 2014)
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