quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

PALAVRAS DE QUE EU GOSTO: FARRUSCO


Mais palavras que eu gosto... AQUI


Era uma vez uma palavra que vivia confortavelmente no dicionário, tentando passar despercebida entre a multidão de letras. Até que – ah-ha! – alguém lhe apontou um holofote e fez com que toda a gente reparasse nela. É mais ou menos isso que se pretende com esta rubrica: mostrar, com as letras de uma mão e os desenhos de outra, porque é que estas são Palavras de Que Eu Gosto. 


#2: FARRUSCO

Desconheço a existência de um inquérito acerca dos nomes mais dados a animais domésticos em Portugal, mas aposto que se tivesse sido feito nos anos 80 concluiria que 51% dos cães e 23% dos gatos se chamavam Farrusco. Piruças e Bolinha deveriam surgir em segundo e terceiro na lista de preferências onomásticas caninas apontadas pelos participantes na sondagem. No meu bairro havia um Pintarolas, que embora seja um nome bem catita, temo que seja menos representativo em termos estatísticos. Mas já me estou a desviar do caminho, não era de bicharada caseira que aqui queria falar. É o que dá escrever textos sem GPS. Recalculando:

O tempo estava farrusco. A passarada, saltitante, chilreava pelos cotovelos e as nuvens, tingidas de um cinzento-arratazado, mais carregadas aqui e acolá, ameaçavam abrir a torneira a qualquer instante. Mais minuto menos minuto, o céu perderia as últimas farripas optimistas de azul e faria questão de mostrar, uma vez mais, como era absolutamente desprovida de sentido essa frase tantas vezes repetida de que os homens não choram.

Era em momentos como este, sempre que estava prestes a desfazer-se em água e a desabar sobre as cabecinhas minúsculas das pessoas lá em baixo, que se lhe estampava no rosto um sorriso matreiro: ficava realmente contente por ser um substantivo masculino e sentia-se orgulhoso de poder contrariar tão absurda ideia. Sempre fora visceralmente contra o machismo, mas não se ficava pelo parlapiê: fazia questão de o demonstrar através de actos. Esta era a sua pequena vingança. E ia continuar a fazer justiça pelas próprias mãos até, cá em baixo, se fazer luz naqueles cerebrozinhos tacanhos.

E, de repente, cabum!, começava a mandar água. Primeiro em pingos espaçados e salpicos tímidos, e depois, pouco a pouco, arrastado pelo seu próprio entusiasmo, já jorrava num caudal desenfreado, em cataratas frenéticas e autênticos rios verticais a inundarem tudo, enquanto cantava a plenos trovões: “Contra os machões, chorar, choraaaaar.”

Algum dia aqueles pintos-calçudos haviam de captar a mensagem do céu. Não ia desistir enquanto não conseguisse.

Texto de Catarina Sacramento
Ilustração de Rita Cortez Pinto
(Publicado a 13 Fevereiro 2014)

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